Jorge Sanchez - Crime e castigo
O Brasil já não é mais o mesmo. Há algumas décadas, quem poderia imaginar que veria no banco dos réus grandes empresários e políticos renomados? E, além disso, sendo julgados e condenados. Mais que um simples julgamento, a Ação Penal 470, o mensalão, muda a imagem do país. A atuação do Supremo Tribunal Federal faz com que a sensação de impunidade seja – ainda que lentamente – substituída pela confiança de que para cada crime, existe um castigo. Mesmo que se trate dos conhecidos crimes de "colarinho branco".
Para o advogado Jorge Donizeti Sanchez, presidente do Conselho Administrativo da Amarribo Brasil, não coube apenas ao STF a missão de remodelar a política nacional. Algumas iniciativas populares, como a lei da Ficha Limpa, demonstram que a população tem sentido necessidade de se engajar politicamente para banir de cargos públicos quem não tem uma bagagem ética e moral para tal. Muito mais que o tão debatido mensalão, Sanchez se preocupa com as várias cidades brasileiras que têm seus mensalinhos, quando, por exemplo, vereadores recebem dinheiro de prefeitos para aprovar projetos.
Depois de passar por Berlim e Bangkok em suas últimas edições, em novembro, será a vez de Brasília receber a 15ª Conferência Internacional Anticorrupção (IACC). Ela é organizada pela Amarribo - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) para combate da corrupção – e pela ONG Transparência Internacional, famosa por sua atuação global anticorrupção. Serão 1500 participantes de 135 países apontando um caminho para que a cultura da Lei de Gerson, de querer levar vantagem em tudo, se transforme em condutas saudáveis para a sociedade.
- Chegou a hora de o Brasil se realinhar com a ética, um dos pilares mais importantes de uma democracia?
- Não tenha dúvida. Muito mais que o aspecto legal, o aspecto moral e ético tem que estar presente, principalmente no administrador público. Acho que estamos tendo uma grande oportunidade de poder passar tudo isso a limpo. Um exemplo é o caso da lei da Ficha Limpa. É um exemplo emblemático, que a sociedade civil se envolveu, acompanhando desde o início. Tínhamos um receio de não haver essa participação, mas houve. Foram mais de um milhão e 300 mil assinaturas, depois esse projeto foi para a Câmara e para o Senado. Tínhamos receio porque lidava com o conflito de interesses de muita gente.
- Houve oposição?
- Muitos deputados e senadores subiram em Plenário e falaram contra o projeto, mas, no fim, ele foi aprovado por unanimidade. Depois, o que era projeto de lei virou lei, sancionado pelo presidente da República. Ainda assim, sabíamos que havia muitas questões constitucionais a serem discutidas. A lei foi para o Supremo Tribunal Federal, e ele disse que não valeria para as eleições de 2010, depois houve outro questionamento de inconstitucionalidade, e a lei está aí, vigente. É, talvez, a única lei na história do Brasil que passou por iniciativa popular, foi aprovada por unanimidade no Congresso, sancionada pelo presidente da República e sua legalidade foi ratificada pelo STF.
- Qual foi o ganho da Ficha Limpa?
- Foi o processo de discussão, a participação da sociedade, ele era discutido nos grandes gabinetes e também nos bares. Nós temos como testemunhar isso. Em 2010, na 13ª Conferência Internacional Anticorrupção, em Berlim, eu falei para uma plateia e eles não acreditaram quando eu disse que, no Brasil, a pessoa, mesmo processada e tendo muitos processos julgados já em 1ª instância, poderia ser senador ou deputado. Isso causou o espanto de muitas pessoas. O que sempre falamos e defendemos é que os poderes precisam ser fortes, as instituições também, mas quando elas não cumprem seu papel, cabe à sociedade civil cobrar. Para termos uma democracia plena no Brasil, é fundamental a participação da sociedade civil. O momento é propício e importante para que a gente coloque isso em prática. O Brasil está 'na moda': uma economia emergente vai fazer uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. A sociedade precisa deixar de achar que política não é uma coisa importante, porque ela é. É uma coisa séria que envolve diretamente o cotidiano e a vida das pessoas. É um momento importante para que a sociedade dê um upgrade na sua cidadania.
- Na Ação Penal 470, o mensalão, há 38 réus, dentre eles políticos e empresários com muita notabilidade, como Marcos Valério e José Dirceu. Isso elimina de vez a antiga visão de que o Brasil não seria um país sério?
- Uma das coisas que mais prejudicam o censo comum é a sensação, que muitas vezes se torna realidade, de impunidade. Outra coisa é a corrupção. Essa sensação de que mesmo que eu praticasse corrupção, não fosse cumprir uma pena, isso faz com que, efetivamente, ataque o sistema coletivo da sociedade, como se dissesse: "Eu não tenho o que fazer, eu não mudo e não vou mudar a regra desse jogo". O julgamento do mensalão, sem dúvida, vai ser um divisor de águas no que diz respeito à sensação de impunidade. A sociedade espera um julgamento dentro dos princípios constitucionais, com direito a ampla defesa.
- Qual a imagem que o Supremo está passando?
- Que isso está mudando, e vai mudar. Que um senador, um deputado, um empresário poderoso podem ser condenados e responsabilizados, e até presos, porque cometeram crimes. Vejo como mais uma oportunidade para começarmos a mudar a frase de Charles de Gaulle que o Brasil não é um país sério. Ele é sério sim, feito de gente honesta, e vai começar a mudar por isso.
- O ex-presidente Lula foi apontado por Marcos Valério como o chefe do esquema do mensalão. O que o senhor acha disso?
- Entre eles, deve haver muitos segredos. Acho que existe um tudo indica que vai ser comprovado que houve aquelas fraudes todas, e agora, está vindo o fogo amigo. Se o Marcos Valério está dizendo, nós não podemos dizer que não, pode ser que existam elementos e provas suficientes para isso. Do ponto de vista do cidadão, se isso realmente for verdade, como parece que é, é muito triste – saber que uma pessoa que tinha um histórico de vida, um operário que tinha ambições políticas, chegou à presidência da República. Foi o primeiro a conseguir isso, e o próprio partido dele, que sempre pregou a honestidade e a ética, ter chegado a esse ponto! É lamentável que isso tenha ocorrido, e agora, se houver elementos suficientes para isso, é importante se apurar, como foi dito até pelos ministros do STF.
- É resultado da investigação do mensalão?
- Com o mensalão, houve uma quebra da tripartição de poderes independentes e harmônicos. Porque houve uma sedução e invasão de poderes, o Executivo acabou, entre aspas, comprando o Legislativo. Isso é muito ruim para a democracia, quebra o princípio republicano e qualquer regra de princípio federativo. É lamentável isso, imagine se uma vez comprovado que o mensalão de fato existiu, que o Executivo comprou o Legislativo, com o Judiciário chancelando...
- Seria um péssimo exemplo?
- Eu vivencio isso, várias cidades têm seus mensalinhos, quando os vereadores recebem dinheiro do prefeito para aprovar projetos. Lá em Ribeirão Bonito mesmo, foram presos cinco vereadores que pediam mil reais por mês para fazer isso. Do ponto de vista didático e educacional, essa decisão do Supremo vai trazer para o coletivo a sensação de que estamos mudando, e que os corruptos têm, sim, uma possibilidade grande de pagar e até serem presos.
- Uma das dificuldades para punir os culpados por corrupção é que é um dos crimes mais difíceis de provar?
- Sem dúvida. A corrupção é como o adultério, os adúlteros tentam fazer tudo escondido, sem deixar rastros, nem provas. Mas estamos vendo que não é impossível ter uma prova. Eu acho também que precisava começar a punir os corruptores, por exemplo, as empresas. Temos no Congresso uma lei que precisa ser aprovada que vai punir as empresas por crime no que diz respeito a essa situação de corrupção, não só pessoas físicas como jurídicas. Na questão de provas, é difícil, mas não é impossível.
- Porque está ocorrendo muito essa questão de o Executivo assediar o Legislativo?
- No sistema que vivemos hoje, o Executivo tem um poder de sedução muito forte sobre o Legislativo, e acaba fazendo maioria nas assembleias e nas câmaras.
Isso precisaria ser revisto, adotar critérios de uma reforma administrativa muito mais profissional do que de aspecto de indicação política, porque isso acaba sendo uma forma de se barganhar algum favor ou algum interesse.
- Este ano, as eleições estaduais estarão com um diferencial, a Lei da Ficha Limpa em vigor. Mesmo assim, ainda há alguns pleitos com candidatos fichas sujas concorrendo. Por que isso acontece?
- É verdade, e esse é um processo que vai ser amadurecido, e vai ser lento. Em 2010, eu mesmo dizia que a Lei não ia valer em 2010, mas que 2012 chegaria. Nós já estamos em 2012, temos mais de 250 candidatos impugnados, como candidatos a prefeito, e mais de 320 no Brasil todo, mas ainda existe uma interpretação da legislação, quer pelos Tribunais Regionais Eleitorais, quer pelo Tribunal Superior. Isso tende a melhorar, vai haver jurisprudências e interpretações, mas nas próximas eleições, com certeza, vai haver menos candidatos fichas sujas. Até porque as impugnações, muitas vezes, partem apenas de iniciativas tão somente do Ministério Público Eleitoral, e as pessoas e os partidos vão, na sequência dos anos, ficar mais atentos a elas. Ainda é um prazo muito rápido, mas isso vai passar. Esse filtro é como se fosse uma peneira que hoje tem um buraco grande e, com o tempo, esse buraco vai se afinando, com as próximas eleições, até chegar em um ponto em que as pessoas de bem passem a se interessar pela política. Hoje, infelizmente, o que vemos é que muitas pessoas que poderiam estar exercendo cargos públicos, e estar ajudando sua cidade ou país, não se envolvem porque a política partidária tem regras pesadas. Pessoas de bem muitas vezes preferem ficar de fora, porque não querem se expor, se envolver.
- Qual é a expectativa para o futuro?
- Minha esperança, como cidadão, é que na política só tenha pessoas de bem. Hoje, existem, sim, pessoas de bem na política, mas nós queremos que todas as pessoas envolvidas com a política sejam ficha limpa, e não só isso, que tenham uma conduta ilibada, uma retidão de caráter. Que tenham uma vida pregressa em que qualquer eleitor possa entrar no site do TRE, ou de um partido político, e ver o histórico de vida daquela pessoa. Não basta não ter o processo, porque, muitas vezes, a pessoa não tem o processo julgado, mas tem um histórico de vida complicado do ponto de vista ético. Ainda há muita interpretação da lei, como a que trás que aqueles candidatos que tiveram contas reprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado não podem ser candidatos. Isso é uma interpretação que está em evolução, mas já é um ganho gigantesco do ponto de vista social. Temos que ficar atentos para que não haja alterações na lei. Juntamente com a Lei da Informação, a Ficha Limpa é a lei mais importante que surgiu no Brasil nos últimos tempos. Espero que essa peneira faça uma melhoria nos partidos políticos.
- Esse não é um trabalho que deveria ser feito pelos próprios partidos?
- A Ficha Limpa só existe porque os partidos políticos não são fortes o suficiente para usar critérios legais, éticos e morais para lançar seus candidatos. Se esse filtro, que deveria ser feito pelos partidos, não é espontâneo, agora ele passou a ser, através da legislação. E mais bonito ainda, por iniciativa popular.
- O país precisa com urgência de uma reforma política?
- Sim, o Brasil precisa da reforma política, tem muitos assuntos que devem ser debatidos com a sociedade. Um dos mais importantes e emblemáticos seria a questão do financiamento de campanha. Hoje, o financiamento privado está aí, e poderemos debater o financiamento público. Um e outro têm vantagens e desvantagens, mas, do jeito que está hoje, o poder econômico tem influência muito forte no resultado dos pleitos eleitorais. O processo eleitoral é o momento mais importante da democracia, e o voto é o ápice desse processo, é o momento sublime em que o eleitor deve estar convencido de que tem condições plenas de escolher o que vai lhe representar. Ainda temos muito a compra de votos, por isso, debater com a sociedade a reforma política e uma série de temas, é fundamental para o enriquecimento da democracia.
- O Brasil está avançando?
- Do ponto de vista democrático, sem dúvida. Nos últimos anos, a sociedade começou a participar, surgiram várias ONGs, mas, ainda, não na velocidade que a gente gostaria que fosse, e a reforma política seria fundamental. Quem sabe, ano que vem, o Congresso volte a esse tema. Mas, se ela existir, tem que ser com pressão da sociedade civil.
- Como funciona a Conferência Internacional Anticorrupção (IACC)?
- Ela é um evento de iniciativa da Transparência Internacional, a maior ONG que combate a corrupção no mundo, sediada em Berlim, e, este ano, será a 15ª Conferência. Tive a experiência de estar na 13ª em Atenas e na 14ª em Bangkok. É o principal fórum mundial que reúne Chefes de Estado, sociedade civil, setor público e privado para discutir as boas práticas de combate à corrupção e trocar experiências do mundo todo. Serão 140 países participantes e cerca de 1500 membros brasileiros e dessas outras nações.
- Serão quantos dias de fórum?
- Quatro dias, entre o dia sete e 10 de novembro, no Ulisses Guimarães, em Brasília. Será discutido tudo que envolve a impunidade, combate à corrupção, atuação do Judiciário, enfim, uma pauta e uma agenda bem extensas.
- E a Amarribo, de que maneira tem atuado?
- Ela é uma Organização Não Governamental de Interesse Público, fundada em 1999, na pequena cidade de Ribeirão Bonito, que tinha apenas 12 mil habitantes. A ideia era ajudar no desenvolvimento socioeconômico da cidade, entretanto, nós fomos demandados sobre questões de corrupção na prefeitura. Descobrimos que tinha corrupção na merenda escolar, na compra de combustíveis, entre outras coisas. Tínhamos um cenário desfavorável, que é o cenário da grande maioria dos pequenos e médios municípios brasileiros.
- Qual é este cenário?
- A Câmara de Vereadores era, em sua absoluta maioria, favorável ao prefeito, não cumprindo o seu papel que é de fiscalizar, e um Judiciário que, muitas vezes, é lento e moroso. Só nos restava mobilizar a sociedade, e nós o fizemos. Em uma cidade de 12 mil habitantes, colocamos mais de mil pessoas em um ginásio de esporte e mostramos as provas. A Câmara de Vereadores começou a entender a mensagem do povo, e passou a pedir a cassação do prefeito. Foi decretada prisão preventiva a ele, e ele renunciou, porque, até então, isto não era caso de inelegibilidade.
- O que aconteceu em seguida?
- Dessa história, rica em detalhes, escrevemos um livro, "O combate à corrupção nas prefeituras do Brasil", e fizemos um site. A partir daí começamos a receber demanda do Brasil todo, com um grupo de pessoas para recebê-las, e ensinando as pessoas a participarem de uma fiscalização dentro da realidade de cada município. Também passamos a viajar e dar palestras simples, com o objetivo único e exclusivo de motivar as pessoas a começarem a participar e fiscalizar as contas de seu município. Já viajamos para mais de 250 municípios e contamos com 220 entidades fazendo seu trabalho individualmente.