O juiz de uma cidade do interior paulista decidiu que se vereadores e cidadãos desejarem fiscalizar as contas municipais, terão que fazê-lo na sede da prefeitura, em dia e horário previamente agendados. Mandou a independência e a separação dos poderes para o beleléu. De uma só tacada também foi para a cucuia o princípio constitucional da transparência. Seria interessante se a sua decisão valesse também para o Poder Judiciário. Juiz que quiser ter acesso a documento de prefeitura, que vá até a prefeitura examiná-lo in loco. A decisão, na prática, revoga o artigo 49 da Lei de Responsabilidade Fiscal que, por sua vez, regulamentou o art. 31, § 3º da Constituição Federal.

Segundo o artigo 31, § 3º, da Constituição Federal, ?as contas do Município ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhe a legitimidade, nos termos da lei?. Vereador também é cidadão, não podemos nos esquecer disso. Já o artigo 49 da LRF diz que ?as contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo ficarão disponíveis, durante todo o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no órgão técnico responsável pela sua elaboração, para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade?. Ou seja, em dois lugares distintos. A lei não possui palavras inúteis ou desnecessárias.

Demonstrando total desconhecimento do que realmente acontece no interior das prefeituras do Brasil, o Juiz de Direito Daniel Felipe Scherer Borborema, que atua no Foro Distrital de Itirapina, Comarca de Rio Claro, com jurisdição sobre o município de Analândia, decidiu que a Câmara de Vereadores de Analândia não tem direito à cópia de todos os comprovantes de despesas e receitas da prefeitura. Se o legislador quisesse que os cidadãos, instituições representativas da sociedade e os vereadores tivessem acesso a tais documentos apenas no interior das prefeituras, certamente não teria mencionado no artigo 49 da LRF em dois locais específicos: 1º) no respectivo Poder Legislativo e 2º) no órgão técnico responsável pela sua elaboração (leia-se setor de contabilidade).

A decisão foi prolatada em um Mandado de Segurança através do qual a Câmara Municipal pretendia que a Prefeitura de Analândia fosse compelida a enviar-lhe a documentação.

O Juiz cedeu ao argumento da Prefeitura de Analândia de que não dispõe ?de pessoal, tempo e estrutura suficientes para o atendimento? da solicitação da Câmara de Vereadores. Com o mais elevado respeito que merece todo Magistrado, talvez desconheça o Juiz deste caso que um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas, em 2006, indicou que anualmente cerca de R$ 10 bilhões escoam dos cofres públicos pelo ralo da corrupção. Expressiva parte dessa corrupção está nas prefeituras brasileiras. Não é diferente em Analândia. Talvez desconheça também que a Prefeitura de Analândia tem quase 500 funcionários para tocar uma cidade de pouco mais de quatro mil habitantes. É um cabidão de emprego horroso. Só para se ter uma ideia, a menos de 80 quilômetros de Analândia, com 340 funcionários, entre efetivos e temporários, mais 18 ocupando cargos de confiança e comissionados, a Prefeitura de Ribeirão Bonito consegue tocar uma cidade de mais de 12 mil habitantes. O Juiz deve desconhecer ainda que, enquanto o salário do prefeito de Analândia gira em torno de R$ 8,5 mil, o do prefeito de Ribeirão Bonito não passa de R$ 6,7 mil. Onde está, então, a falta de recursos e pessoal.

Como cair nessa conversa de que não há recurso nem pessoal para tirar fotocópia da documentação? O exame da prestação de contas de um município não leva menos de 30 dias. Ora, não é mais caro deixar um ou dois funcionários durante um mês vigiando quem examina os documentos, do que tirar fotocopia dos mesmos?

Certamente o Juiz desconhece que quatro ou cinco vereadores de Analândia são funcionários da Prefeitura. Assim, não têm tempo e muito menos interesse em ir até lá para fazer qualquer fiscalização. São vereadores nas horas de folga apenas. Desconhece também as ameaças e intimidações que são feitas a qualquer cidadão comum que se aventure em ingressar na Prefeitura de Analândia, como de resto em qualquer prefeitura do Brasil, para realizar qualquer tipo de fiscalização. Em Analandia colocam a pessoa numa sala minúscula, quase sem ventilação, geralmente com dois brutamontes que ficam o tempo todo atrás do cidadão, olhando-o sobre os ombros e soltando baforadas de fumaça de cigarro nas suas costas. Tudo no intuito de incomodá-lo e desestimulá-lo. Ninguém duvida que o assassinato do ex-vereador Evaldo José Nalin foi um recado claro dirigido a qualquer um que queira fiscalizar as contas públicas de Analândia.

Pergunta-se ao digno Magistrado: Sem acesso aos documentos, em local livre de pressão de todo tipo, ameaças e intimidações, como os cidadãos terão a possibilidade de descobrir novas notas fiscais de shows como o de Gera Samba, nunca ocorrido? Ou o fornecimento de carne para a merenda escolar por uma papelaria? A existência de funcionários fantasmas? Isso, só para citar alguns exemplos. Quando o magistrado dá dinheiro para sua empregada fazer as compras do mês, exige-lhe a nota fiscal e o troco (prestação de contas) quando ela retorna do supermercado, ou a empregada diz a ele que, se quiser, vá verificar a prestação de contas lá na cozinha?

O fato é que as contas públicas em Analândia não resistem a trinta minutos de fiscalização séria e competente. Todos sabem que a fiscalização realizada pela maioria dos Tribunais de Contas, com raríssimas exceções, é uma fiscalização de faz de contas, baseada meramente em índices percentuais de aplicação de recursos. Tanto é verdade que, se fiscalizadas com profundidade e seriedade, jamais as contas da Prefeitura de Analândia receberiam parecer do TCESP favorável à sua aprovação.

É por isso que ninguém mais duvida que se o Brasil chegou a esse estado de putrefação na administração do dinheiro público, a culpa é em sua grande parte do Poder Judiciário. Porque é o Judiciário que, com decisões desse quilate, alimenta a sensação de impunidade.

Veja que, se um advogado não presta contas a seu cliente, o Judiciário o obriga a fazê-lo detalhadamente, em caso de uma ação de prestação de contas. Todavia, um prefeito que movimenta milhões de reais não é obrigado a fazer o mesmo.

Com o mais elevado respeito ao digno Dr. Daniel Felipe Scherer Borborema, devo dizer que a sua decisão é um retrocesso enorme para o exercício do controle social e da democracia participativa no Brasil. E faço um convite para que ele nos acompanhe, juntamente com um grupo de cidadãos, para uma fiscalização do tipo que sugere seja feita, para que volte à realidade e, principalmente, a ter os pés no chão.